segunda-feira, agosto 01, 2011

HORA ABSURDA


O TEU SILÊNCIO é uma nau com tôdas as velas pandas... 
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso 

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte... 
Teu silêncio recolhe-o e guarda-o partido a um canto...
Minha idéia de ti é um cadáver que o mar traz à praia, e entanto 
Tu és a tela irreal em que erro em côr a minha arte... 

Abre tôdas as portas e que o vento varra a idéia 
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões... 
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia, 
E a minha idéia de te sonhar uma caravana de histriões

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim...
Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e tôda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...
Hoje o céu é pesado
Como a idéia de nunca chegar a um pôrto
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!...
Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido 
Tôdas as minhas horas são feitas de jaspe negro, 
Minhas ânsias tôdas talhadas num mármore que não há, 
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má... 
Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos 
Os pendões das vitórias medievais 
Nem chegaram às cruzadas
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos 

Ah, como esta hora é velha! E tôdas as naus partiram! 
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam 
De longe, das horas do Sul, 
De onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam... 
O palácio está em ruínas. Dói ver no parque o abandono 
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudade de si ante aquêle lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito
Com a frase mais bela cortada... 

A doida partiu todos os candelabros glabros, 
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas... 
E a minha alma é aquela luz
Que não mais haverá nos candelabros... 
E que querem ao lago aziago minhas ânsias,
Brisas fortuitas?... 
Por que me aflijo e me enfermo?...
Deitam-se nuas ao luar
Tôdas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a idéia de naufragar,
E a idéia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido... 
Já não há caudas de pavões
Tôdas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão,
E ainda chora
Um como que eco de passos pela alamêda que eis finda... 
Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas
Sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a idéia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um pôrto sem navios... 
Ergueram-se a um tempo todos os remos...
Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou
E ainda está quente... 
Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol! 
Tôdas as princesas sentiram o seio oprimido... 
Da última janela do castelo só um girassol 
Se vê, e o sonhar que há outros
Põe brumas no nosso sentido... 
Sermos, e não sermos mais! Ó leões nascidos na jaula!... 
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?... 
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula... 
Por que não há de ser o Norte e Sul?
O que está descoberto?... 

E eu deliro... De repente pauso no que penso. Fito-te. 
E o teu silêncio é uma cegueira minha...Fito-te e sonho... 
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te, 
E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor de medonho. 

Para que não ter por ti desprêzo? Por que não perdê-lo? 
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, 
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque. 

Gelaram tôdas as mãos cruzadas sôbre todos os peitos 
Murcharam mais flôres do que as que havia no jardim 
O meu amar-te é uma catedral de silêncio eleitos, 
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir
Tecedeiras viúvas gozam mortalhas de virgens que tecem 
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir, 
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem... 

É preciso destruir o propósito de tôdas as pontes, 
Vestir de alheamento as paisagens de tôdas as terras, 
Endireitar à fôrça a curva dos horizontes, 
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serra 

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem! 
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã
- Como nos desalegra!...
Que meu ouvir teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso anjo exilado e o teu tédio auréola negra 
Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce... 
Não chove já e o vasto céu um grande sorriso imperfeito
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito 

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!... 
Ah, se fôssemos duas côres de uma bandeira de glória! 
Estátua acéfala posta num canto poeirenta pia batismal 
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro êste lema:
- Vitória! 

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma 
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos... 
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma... 
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos... 
 Fernando Pessoa 
4-7-1913

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